Uma ponte entre ciência e religião



Budismo não tem Deus nem se baseia em reza; busca eliminar o sofrimento analisando o funcionamento da mente

“Para mim, o budismo é a ponte entre o materialismo e o espiritualismo”, afirmou o Dalai Lama, ao ser questionado sobre a relação entre a milenar religião oriental, da qual ele é um dos principais líderes, e disciplinas mais modernas como a psicologia e a neurociência.

“Alguns estudiosos dizem que o budismo não é uma religião, mas uma ciência da mente. Há uma lógica nessa afirmação, pois todos os objetivos do budismo são atingidos por meio do treinamento da mente, e não da reza”, continuou Tenzin Gyatso, durante entrevista exclusiva ao Link na última sexta-feira.

“Isso é algo único do budismo em relação às outras religiões importantes do mundo. Mas não quer dizer que o budismo seja uma religião melhor. Não é”, disse.

Nos últimos anos, diversos pesquisadores ocidentais deram início a investigações para tentar avaliar, com base em métodos científicos, os efeitos da meditação budista no cérebro humano. O próprio Dalai Lama foi convidado a participar, no final de 2005, da Conferência Anual da Sociedade de Neurociência norte-americana, em Washington D.C.

A participação do líder religioso do budismo tibetano no importante congresso, assim como as pesquisas sobre os efeitos da meditação, provocaram polêmica por tocar em um dos pilares do universo científico ocidental: a incompatibilidade entre ciência e religião.

“Quem virá no próximo ano? O papa?”, perguntou um dos pesquisadores contrários à recente participação de Dalai Lama no encontro científico americano.

“Muitas pessoas ainda consideram ciência e religião como sendo opostas. Embora eu concorde que alguns conceitos religiosos conflitem com certos princípios e fatos científicos, acredito que representantes desses dois universos podem estabelecer uma discussão inteligente”, escreveu Dalai Lama em artigo publicado no jornal The New York Times em novembro de 2005.

Diplomático, o líder tibetano chegou a sugerir que o budismo deveria abandonar algumas de suas crenças que já tenham sido provadas como erradas pela ciência. E introduziu nos monastérios budistas sob sua orientação a obrigatoriedade do estudo de disciplinas como física, química e biologia.

Mas, afinal, o que no budismo justificaria uma maior colaboração com a ciência?

O budismo é uma religião, mas é mais ainda um sistema ético, filosófico e psicológico que visa a auxiliar as pessoas a entender as razões de seus sofrimentos e construir uma vida mais feliz e em harmonia com os outros.

Busca-se esse objetivo por meio de uma análise minuciosa do funcionamento da mente, através de práticas de meditação surgidas na Índia há mais de 2.500 anos e constantemente aprimoradas no Oriente desde então. Por isso, alguns estudiosos do budismo o definem como uma “tecnologia (para o controle) da mente” ou “tecnologia da iluminação (despertar da mente)”.

No Ocidente, o estudo científico dos fenômenos psíquicos e do comportamento, chamado genericamente de psicologia, teve grande desenvolvimento a partir do final do século 19. No século 20, foi a vez da neurociência, que estuda a estrutura, o funcionamento e as doenças do sistema nervoso (principalmente do cérebro).

Desde 1987, o instituto Mind and Life, do qual o Dalai Lama é presidente de honra, promove, a cada dois anos, em Dharamsala (capital do governo tibetano no exílio, no norte da Índia), uma semana de conferências com o objetivo de estabelecer uma colaboração entre a ciência moderna e o budismo.

Segundo o neurocientista de origem chilena Francisco J. Varela (1946-2001), um dos fundadores do instituto (www.mindandlife.org), o budismo é uma “excelente fonte de estudos sobre a mente humana, realizados durante muitos séculos com grande rigor teórico, e, ainda mais significativo, com exercícios e práticas muito precisas voltadas para a exploração individual”.

“Esse tesouro de conhecimento é um complemento insubstituível para a ciência”, completou o estudioso, cuja carreira foi baseada na França.

O próprio Sidartha Gautama, fundador da religião no ano 550 a.C, sempre urgiu seus discípulos a não aceitarem a validade de suas próprias afirmações, por simples reverência. Aconselhava-os a testar a verdade do que ele dizia através de um exame meticuloso e da experimentação pessoal.

Ou seja, o próprio Buda histórico adotou, desde o início, uma postura científica de experimentação constante dos princípios teóricos e das práticas budistas.

Mais: o Buda não é considerado Deus. Na verdade, o budismo nega a existência de um criador supremo. Seu objeto principal é o sofrimento e a possibilidade de cessação do sofrimento, não questões teológicas ou ontológicas.

Em artigo intitulado “Religião e Ciência”, publicado em 1930 na New York Times Magazine, Albert Einstein escreveu: “O budismo tem as características que se poderia esperar de uma religião cósmica para o futuro. 

Transcende a idéia de Deus, evita dogmas e a teologia. Trata tanto do natural quanto do espiritual e é baseada em uma noção religiosa que aspira à vivência de todas as coisas, naturais e espirituais, como uma unidade cheia de sentido”.

“Da perspectiva do bem-estar humano, não podemos dizer que a ciência e a espiritualidade não estão relacionadas”, escreve o Dalai Lama no prólogo do livro O Universo em um Átomo - O Encontro da Ciência com a Espiritualidade, lançado no Brasil, pela editora Ediouro. “Precisamos de ambas, já que o alívio do sofrimento deve acontecer tanto no nível físico quanto no psicológico”. O.D e R.A. 


 Dalai Lama